A evolução e a domesticação do cão

Compreender como os cães evoluíram e como ocorreu o seu processo de domesticação é fundamental para interpretar o seu comportamento e as suas necessidades, assim como para saber comunicar e cuidar destes animais.

Compreender como os cães evoluíram e como ocorreu o seu processo de domesticação é fundamental para interpretar o seu comportamento e as suas necessidades, assim como para saber comunicar e cuidar destes animais. Além disso, o conhecimento obtido através da compreensão desta evolução e do processo de domesticação permite entender muitos aspectos da vida quotidiana dos cães.

Os ancestrais do cão

Hoje, sabemos que o ancestral do cão é o lobo. Contudo, segundo estudos científicos realizados na última década, os cães, ao contrário do que se acreditava anteriormente, não descendem do lobo-cinzento moderno que habita no hemisfério norte – do Alasca até à Sibéria, e à Arábia Saudita. Em vez disso, os cães descendem de um lobo extinto ainda desconhecido.

Quando o Homo sapiens chegou à Europa, entre 45.000 e 55.000 anos atrás, o lobo-cinzento e outras espécies de lobo já eram os animais mais bem-sucedidos e adaptáveis da família dos canídeos. Encontravam-se por toda a Eurásia, pelo Japão, pelo Médio Oriente e pela América do Norte. Isto significa que não viviam num único tipo de habitat, tendo-se adaptado a tundras, estepes, desertos, florestas, regiões costeiras e, até, às altas altitudes do Planalto Tibetano.

A extraordinária adaptabilidade dos lobos foi herdada pelos cães, que se tornaram numa subespécie (Canis lupus familiaris) com ainda maior capacidade de adaptação do que os seus antepassados. Este factor hereditário, aprimorado ao longo do tempo, foi fundamental para o sucesso dos cães.

Domesticação e evolução do cão

Até hoje, ainda não sabemos exactamente como os cães evoluíram a partir dos lobos e se tornaram nos primeiros animais domesticados, nem sabemos ao certo quando, ou por que motivos, ocorreu esse processo.

Há alguns anos, foi sequenciado o genoma de um lobo que viveu há 35.000 anos, em Taimyr (norte da Rússia), o que permitiu reconstruir a árvore evolutiva lobo-cão. Os investigadores descobriram que cães e lobos se separaram em duas linhagens distintas entre 27.000 e 40.000 anos atrás. Estas conclusões, baseadas no DNA, estão de acordo com as que foram obtidas por pesquisas arqueológicas.

Entre as teorias sobre a domesticação do cão, destaca-se a de “selecção populacional”, segundo a qual o ancestral do cão, sendo um necrófago, procurava restos de comida deixados por humanos. Os animais mais ousados aproximavam-se cada vez mais, até passarem a viver com as comunidades humanas.

No entanto, esta teoria tem uma limitação: é provável que os humanos só começassem a deixar restos de comida de forma consistente quando se tornaram sedentários, há cerca de 12.000 anos. Porém, como vimos, durante o Paleolítico Superior (50.000–12.000 anos atrás) já existia cooperação entre cães e humanos. Isto significa que ainda há muito por descobrir sobre este processo.

Neste contexto, vale a pena destacar o trabalho de Christoph Jung e de Daniela Pörtl, publicado em 2011, na revista Dog Behavior, intitulado “Scavenging Hypothesis: Lack of Evidence for Dog Domestication on the Waste Dump”. Os autores argumentam que a domesticação dos cães envolveu a participação activa de ambas as espécies, humanos e lobos, que partilhavam o mesmo nicho ecológico, caçavam as mesmas presas e utilizavam métodos cooperativos semelhantes.

Segundo os autores, havia um respeito mútuo entre humanos e lobos antigos, e indícios de cooperação activa e de laços emocionais muito antes de haver lixo humano que pudesse servir de alimento. Esta relação pode ter originado uma ligação emocional e uma comunicação interespecífica que continua até hoje e que tem levado a um melhoramento das capacidades sociais e cognitivas de ambas as espécies.

Adaptação genética e selecção

Todas as espécies, incluindo o Canis lupus familiaris e o Homo sapiens, resultam de adaptações evolutivas bem-sucedidas. Até viverem em estreita proximidade com os humanos, os cães evoluíram através da selecção natural, possivelmente por via de um subtipo de selecção natural designado por “selecção relaxada”, que ocorre em contextos onde existe abundância de recursos, o que leva a um rápido crescimento populacional, permitindo a transmissão frequente de alelos (versão diferente de um mesmo gene).

A convivência próxima com os humanos levou a que o processo de domesticação avançasse também através da selecção artificial, na qual os humanos passaram a influenciar as características genéticas dos cães para satisfazer melhor as suas necessidades.

A experiência de Belyaev

O trabalho conduzido pelo geneticista soviético Dmitri Belyaev, a partir de 1959, procurou tornar as raposas mais dóceis para facilitar o seu manejo em fazendas de peles. Após 40 anos e 30 gerações de cruzamentos selectivos, as raposas ficaram domesticadas, começando a comportar-se e, até, a parecer-se com cães: interagiam com humanos, tinham pelagens mais coloridas, orelhas modificadas, dentes e ossos menores e vocalizações semelhantes a latidos.

Além disso, apresentavam níveis mais baixos de adrenalina devido à redução do medo, afectando a resposta de luta ou fuga (fight-or-flight response), e alterando a química corporal. Esta descoberta sugere que os antecessores dos cães, sendo menos medrosos, sofreram mudanças químicas e comportamentais que influenciaram directamente a sua aparência e a sua personalidade, favorecendo a interacção com os seres humanos.

A mente canina e a cognição social

Brian Hare, professor na Duke University, tem estudado a domesticação dos cães do ponto de vista cognitivo. Ele propõe duas hipóteses:

  1. Selecção para comunicação: a capacidade de prever e de manipular o comportamento humano através de sinais comunicativos terá sido um alvo directo da selecção.
  2. Correlacionado por produto: a habilidade de ler sinais humanos teria surgido como consequência da selecção para comportamentos dóceis e sociais, e não como um objectivo primário.
O papel dos cães na modernidade

O século XIX foi crucial para a mudança de imagem dos cães, que passaram a ser associados a animais de companhia. No Reino Unido, onde o amor da Rainha Vitória por cães teve uma grande influência, os cães deixaram gradualmente de ser vistos apenas como animais de trabalho.
A industrialização, o aumento do comércio, as mudanças nas classes sociais, a emancipação das mulheres e o crescimento do lazer foram factores que contribuíram fortemente para esta mudança de mentalidades relativamente aos cães.

As exposições e as competições caninas foram fundamentais para a criação das raças modernas e impulsionaram, ainda mais, a centralidade do cão no quotidiano urbano.

Como explica Philip Howell, em “At Home and Astray”, a segunda metade do século XIX foi um período de urbanização acelerada em Londres, onde os cães substituíram outros animais de rua. Assim, passaram a ocupar um lugar privilegiado dentro de casa, recebendo nomes, histórias próprias e, até, sepulturas em cemitérios para animais. Surgiram, também, os primeiros lares para cães abandonados, como o famoso Battersea Dogs Home.

Hoje: mais do que trabalhadores, companheiros

Actualmente, nos países ocidentais, a maioria dos cães são tidos como animal de companhia, embora muitos desempenhem ainda funções de trabalho. A sua inclusão nas famílias humanas impulsionou um grande aumento do estudo do seu comportamento, da sua saúde e da sua psicologia.

Ter conhecimento sobre a evolução e a domesticação do cão é essencial, uma vez que nos ajuda a perceber que este animal foi seleccionado e criado ao longo do tempo para satisfazer necessidades humanas – que hoje são, principalmente, emocionais. Existem inúmeros estudos que demonstram que um cão pode ajudar a controlar a ansiedade, a regular as emoções e a melhorar o humor de uma pessoa.

Assim, podemos afirmar que, actualmente, os cães são, acima de tudo e com todo o mérito, companheiros e membros das famílias humanas.